Por uma teologia do trabalho em tempos de desemprego, precarização e home office - parte 2

Vinnícius Almeida
8 min readMay 1, 2023

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Estávamos no Rio, um dia lindo e o calor daqueles de fritar ovo no asfalto! Para fugir do Sol do meio-dia, entramos no restaurante. Ora pela fome, mas também pela sombra. Lugar lotado, bom e de preço justo (justo? Veremos!).

Tenho lembranças de estarmos saciados, mas de continuar pedindo um docinho aqui, um sorvetinho ali, para ir resistindo um pouco mais no local, só para ter mais tempo na companhia do ar condicionado. A garçonete ria, sabendo de nossos pedidos-desculpa em forma de brigadeiro, doce de leite, sacolé, mas trazia-os, sempre muito solícita e com uma graça na fala.

Saímos no meio da tarde pra voltar a curtir a beleza toda que é o Rio…
Amamos a Cinelândia, aquele clima todo e nas oportunidades que temos, curtimos muito nos hospedar por ali, embora esse texto não seja sobre as lindezas daquela cidade.

O que nos chamou a atenção foi ter voltado tarde da noite e sermos atendidos pela mesma pessoa. E que algumas delas também “esticavam” o turno.

Não resisti. E logo se foi o modo férias/descanso.

Indaguei:
— Olha, não é por nada, porque amamos a sua atenção e receptividade, mas não esperava ser atendido novamente por você. Não deveria ter encerrado o seu expediente?

Aquela mulher, aproveitando o ângulo do restaurante e a saída do patrão, disse que era a única condição do trabalho: aceitar as longas jornadas. Elas resgistravam o ponto após 8 horas diárias de trabalho, mas trabalhavam a mais. Isso não era formalizado, ou seja, não havia hora extra e nem adicional noturno, somente o valor “das horas”.

Relatava ainda do tempo de deslocamento, do trânsito, do filho que só “via” na folga, pois saía cedo e chegava tarde demais e então, no pouquíssimo tempo que passava em casa, a criança estava dormindo. Disse o quanto aquilo tudo a angustiava. Acrescentou que muitas de suas colegas de trabalho vivem na mesma situação e não havia a ser feito… ou trabalham nesta condição ou então, não há emprego! E nos dizia que muitos estabelecimentos no centro do Rio operam nessa mesma lógica.

Conversamos um tempo sobre isso. Desejei-lhes bênçãos e mudança nessa situação e saí de lá com o compromisso ético e político de seguir debatendo essa questão sempre que possível.

E é a partir daqui que penso a segunda parte desse texto. Por uma teologia do trabalho em tempos de desemprego, precarização e home office .

A teologia do trabalho é uma área de estudo teológico que se concentra em compreender o significado e o propósito do trabalho humano na perspectiva da fé e das tradições religiosas. Ela busca investigar a relação entre trabalho e espiritualidade, e como o trabalho pode ser visto como uma forma de serviço e missão no mundo.

Se o trabalho tem um lugar nessa área de estudos que procura responder a perguntas como:

1) Qual é a natureza do trabalho humano?
2) Qual é o papel do trabalho na vida do ser humano?
3) Como o trabalho pode ser uma expressão da fé?
4) Como o trabalho pode ser visto como uma forma de contribuir para a construção do Reino de Deus na terra?

Então, essa teologia precisa refletir (só refletir?) sobre a dignidade do trabalho e os direitos trabalhistas; a justiça econômica; o equilíbrio entre trabalho e vida pessoal; a ética do trabalho; sobre o descanso; e a relação entre trabalho e espiritualidade.

Essa abordagem teológica pode ser encontrada em diversas tradições religiosas, incluindo o cristianismo, o judaísmo, o islamismo e o budismo. No entanto, me preocupa especificamente aqui, como a tradição cristã pensa a categoria trabalho. Aliás, pensar é algo que vem sendo muito bem feito.

Na tradição cristã, existem vários pensadores importantes que abordaram a teologia do trabalho. Do período dos Pais da Igreja, passando pelos reformadores até chegar na teologia contemporânea, muita gente aborda (e bem) esse tema:

Santo Agostinho:
“O trabalho é uma necessidade imposta pela natureza, mas também é uma virtude. Dessa forma, o homem deve trabalhar não só para satisfazer as suas necessidades, mas também para cumprir o dever da virtude” (Cidade de Deus, XIX, 16).

São Basílio:
“Trabalhe como se o trabalho fosse uma oração”.
“O trabalho é uma forma de exercer a vontade de Deus e cooperar com a sua obra criativa. Ele nos permite imitar a atividade divina, que é a fonte de todo o bem” (Sobre o Espírito Santo, 27).

Os reformadores (Pelo menos dois deles)

Martinho Lutero:

“O trabalho é um meio para Deus realizar seus propósitos na terra através do homem, e deve ser feito com alegria e gratidão.” (Comentário sobre a Epístola aos Gálatas, 5.1–12)

João Calvino:

“O trabalho é a melhor maneira de servir a Deus e aos homens, e todo trabalho honesto é um ato de adoração a Deus.” (Institutas da Religião Cristã, III.10.6)

Na cena mais contemporânea:

Miroslav Volf:

“O trabalho não deve ser visto apenas como uma forma de sustentar nossa vida material, mas como uma forma de contribuir para a construção de uma sociedade justa e solidária.” (Work in the Spirit: Toward a Theology of Work, 23)

Dorothy L. Sayers:

“O trabalho é uma forma de desenvolver nossa identidade e de expressar nossa vocação como seres humanos criados à imagem de Deus.” (The Mind of the Maker, 96)

Jürgen Moltmann:

“O trabalho é uma forma de participação na obra redentora de Deus no mundo, e de antecipação do Reino de Deus.” (God in Creation: A New Theology of Creation and the Spirit of God, 214)

Na Teologia Latino-americana:

Gustavo Gutiérrez:

O trabalho é uma forma de solidariedade com os pobres e de compromisso com a justiça social.” (The Power of the Poor in History, 99)

Leonardo Boff:

“O trabalho é uma dimensão fundamental da vida humana, e deve ser valorizado como uma forma de realização pessoal e de contribuição para o bem comum.” (Ecologia: Grito da Terra, Grito dos Pobres, 158)

Jon Sobrino:

“O trabalho é uma forma de construir uma sociedade mais justa e solidária, e de contribuir para a realização da vontade de Deus no mundo.” (Christology at the Crossroads, 137)

Na Doutrina Social da Igreja:

“O trabalho é um bem para o homem e para a sociedade, porque ele contribui para o desenvolvimento pessoal e para o bem comum.” (Catecismo da Igreja Católica, n. 2428)

Na ala reformada neo-calvinista:

Abraham Kuyper:

“O trabalho é uma dádiva de Deus, uma vocação que Ele nos dá para exercer nosso domínio sobre a criação e para servir a Ele e ao próximo.” (Kuyper, “Sphere Sovereignty”, em Lectures on Calvinism)

“A esfera do trabalho é uma área onde Deus reivindica Sua soberania e onde devemos buscar a Sua vontade e a Sua glória.” (Kuyper, O problema da pobreza)

Herman Dooyeweerd:

“O trabalho é uma das esferas da vida humana que deve ser orientada pela lei de Deus e pela busca do bem comum.” (Dooyeweerd, “The Christian Idea of the State”, em In the Twilight of Western Thought)

Nicholas Wolterstorff:

“O trabalho é uma forma de participação na criação de Deus, e deve ser orientado pela visão cristã de que somos chamados a servir a Deus em todas as áreas da vida.” (Wolterstorff, “Work and the Glory of God”, em Redeeming the Time)

É um blog e não pretendo me alongar.

Vejamos quanta gente boa discutiu esse tema com responsabilidade. Há fontes para a inspiração e para se pensar (e agir) buscando alternativas.

Isso posto, essa não deveria ser uma pauta primordial na agenda cristã? Num país majoritariamente cristão, pode àquela mulher ter tantos direitos violados?

Será que veremos um congresso refletindo sobre a categoria trabalho ou esse tema não soa espiritual?

Bem que poderia acontecer um congresso entre cristãos e empresários, sensibilizando-os para um posicionamento mais justo e ético nas relações de trabalho, não acham?

Seguiremos romantizando a categoria trabalho, citando Lutero e Calvino, mas sem ver realmente o quanto a sociedade brasileira têm: a) jornadas extensas de trabalho; b) o desgaste físico-mental dos trabalhadores e trabalhadoras; c) sobre o deslocamento e a mobilidade: os bairros-dormitórios; d) a violação de direitos.

Além disso, menciono alguns assuntos que considero urgentes nessa pauta:

1) Falta de fiscalização: A fiscalização das leis trabalhistas muitas vezes é falha, o que permite que empregadores descumpram os direitos dos trabalhadores sem serem punidos. Vide o caso recente da famosa vinícola…

2) Cultura empresarial: Inegável que as empresas valorizam mais o lucro do que o bem comum e bem-estar dos trabalhadores, o que leva a práticas abusivas, como a exploração do trabalho em condições precárias e a não concessão de benefícios trabalhistas. A questão seria: um cristão empresário, pode fazer isso? Agir como os demais?

3) Crise econômica: A crise econômica do país tem levado muitas empresas a adotar medidas drásticas para reduzir custos, o que pode incluir a redução de salários e a demissão de trabalhadores sem o pagamento de todos os direitos. E aí é pensar numa economia à serviço da vida, como diz Francisco.
Gosto de uma banda de rock argentino que diz: “La economía nos robó la vida”. Não pode e nem é pra ser assim!

4) Trabalho informal: Muitos trabalhadores brasileiros atuam na informalidade, sem registro em carteira, o que os deixa desprotegidos em relação aos direitos trabalhistas.

5) Falta de conscientização: Infelizmente, é comum a população desconhecer seus direitos trabalhistas e não saber como reivindicá-los, o que acaba favorecendo a exploração por parte dos empregadores.

A questão que permanece é: e aquelas mulheres, suas longas jornadas de trabalho e as condições precarizadas?

Aliás, um toque aqui aos cristãos-conservadores: o sociólogo do trabalho Ricardo Antunes identifica em sua obra que havendo crise no mundo do trabalho, as mulheres são as primeiras a serem mais precarizadas, em salários e nas violações de direitos. Todas as garçonetes daquele restaurante eram mulheres. Muitas delas, mães. Algumas delas, cristãs. E soube de que haviam evangélicas. A que horas elas vão ao culto de suas igrejas? Quando leem a Bíblia? Ou… em que momento desfrutam da companhia de seus companheiros e seus filhos?

Como essas reflexões todas podem efetivamente alcançar e modificar a cultura das relações de trabalho no Brasil? Porque me parece que a esfera do trabalho no mundo atual mais serve ao deus-mercado do que propriamente os propósitos divinos: shalom, descanso, justiça.

  • Hoje, 1° de maio, lembro-me dela, de suas companheiras e dos trabalhadores e trabalhadoras desse Brasil. Minha intenção em preces por vocês é que tenhamos um país mais justo, direitos garantidos e possibilidades de viver bem a vida. Como cristão, acredito que a igreja brasileira deveria ser a primeira instituição (antes mesmo do Estado), por fundamentos bíblico-teológicos, mas também éticos , a ser sensível a tudo aquilo que envolve as pessoas e o mundo do trabalho.

As razões estão supracitadas.

Ora et labora!

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