Do Shopping à Terra Média: entre uniformes e armaduras

Vinnícius Almeida
7 min readOct 12, 2023

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Nós gostamos de brindes! Gastamos por eles! O marketing entendeu isso rápido e a sociedade do consumo também.

Naquela noite, o algoritmo já havia me gerado o desejo de ter. E ao entrar em uma rede de fast-food, no Bob’s, estávamos no lugar das possibilidades infinitas. De vitrines, gente elegante e ar condicionado. De andar devagar. Uma cidade imaginada para se comprar traquilamente.

É… eu sei disso. Tento andar “desconceituado” quando estou nesses lugares, embora sempre me venha alguma ideia desses livros à mente. E acho que no fundo, ela, a própria mente, curta isso.

Dessa vez, do nada (?), me veio o Jean Baudrillard. Um sociólogo francês que explorou a natureza da cultura de consumo e a sociedade contemporânea em sua obra. Baudrillard é conhecido por sua teoria da “Sociedade de Consumo” e sua ideia de “Simulacros”.

Baudrillard argumenta que na sociedade de consumo contemporânea, a realidade está sendo substituída por “simulacros”, representações e imagens que obscurecem a distinção entre realidade e ficção. Ele acredita que o consumismo desempenha um papel fundamental nesse processo, levando as pessoas a valorizar produtos não apenas por suas utilidades reais, mas também pelo status e pelo significado simbólico que representam.

A cultura dos brindes, como parte do marketing de consumo, se encaixa na crítica de Baudrillard. Ele argumentaria que os brindes são produtos que muitas vezes não têm valor prático real, mas são usados como símbolos para criar desejos e ilusões de status. Os brindes, portanto, contribuem para a criação de uma realidade hiperreal, onde a distinção entre o real e o simulado se torna cada vez mais nebulosa.

Até aí… o que é que tem?
De vez em quando pode. Todo mundo deseja algo…
Acaso sou um asceta? Deveria? Do quê?
E ouvia vozes assim na consciência: Ah, mas por eles vale! Além disso, o dia das crianças está aí! Por quê não?!

Liguei para Ale e pedi para que me encontrasse em um movimentado shopping. Meu objetivo era adquirir miniaturas dos personagens épicos do Senhor dos Anéis. Lá estava. Observando aquelas pessoas, suas compras, do alto de minha “sociologia de shopping”, como se fosse eu o próprio Baudrillard e não tivesse meus quereres, brindes, simulacros e sacolas existenciais para carregar.

Alerte-me sobre as alças soltas da minha sacola, mas antes assegure-se de que a sua bagagem está bem amarrada.
[Evangelho de S. Lucas, 6.42, na linguagem de Shopping]

Fui à fila. Lotada para uma rede de fast food que geralmente é a mais vazia se comparada às outras duas concorrentes.

No entanto, enquanto contemplava os detalhes das miniaturas expostas no balcão, o que realmente me tocou foi a cena dos atendentes: que enfrentavam um constante turbilhão de pedidos e a pressão.

Ali percebi a jornada épica daquelas vidas e da labuta diária. A loja abre às 10:00 e fecha às 22:30. Pensando nisso, não via mais os uniformes, mas armaduras. E os atendentes, como heróis anônimos. Longe de romantizar as jornadas extensas de trabalho, muito pelo contrário. É urgente debater esse tema. Entretanto, não havia como desperceber o trabalho em equipe realizado na Terra Média do Fast-Food: a praça de alimentação de um shopping center.

Pensei em Frodo, porque se nosso lazer se tornou somente andar num ambiente fechado e ter no cardápio burgers, refrigerante (refil) e batata frita, o condado perdeu em qualidade de vida. É esse nosso único meio de lazer? Espero que não.

Enquanto comia um combo, nome este que atribuem à escolha de um lanche, seguido de refrigerante e batata frita, decidi que levaria todas as miniaturas. Porque se tivesse que comer aquele lanche mais sete vezes, não seria um sacrifício, mas também não ficaria rentável, e, sobretudo, saudável.

Nesse inteirim, encontrei o Valdo. Um amigo das antigas. Não como Sam e Frodo, Légolas e Gimly, mas um amigo é sempre um amigo e sua companhia foi o suficiente para me apoiar na decisão de levar a coleção completa.

Ah, Vi. Dê esse presente para sua criança interior, disse ele.

Interior…

Voltei à fila. Algo tão indesejado e (oni)presente na dinâmica das cidades. Dessa vez, próximo das dez, a praça estava ainda mais cheia, enquanto os sacos das miniaturas cada vez mais vazios.

Por um instante, fiquei preocupado e cheguei a perguntar o que aconteceria caso não tivesse todos os personagens representados ali. Fui informado que o próximo lote seria apenas para o mês seguinte. E por um instante, me orgulhei de ter feito a coisa certa, a compra toda, o lote cheio.

Era um olho nas miniaturas para precaver de não repetirem os personagens no ato da entrega, e outro na correria dos atendentes. Um deles estava constrangido porque precisava encontrar meus bonecos e com isso, deixava sua equipe na mão. Conforme revirava a sacola em busca da minha compra completa, percebi que não conseguia atender ou entregar o que era realmente importante naquele momento: o lanche. Pelo menos, não para mim, que aguardava meu precioso... kit.

Entendi que nem mesmo o sistema estava habilitado para isso. Recusava uma compra cheia. Era preciso lançar um item de cada vez. E assim foi: Gimli, Légolas, Frodo, Aragorn, Smeagol, Sauron e Gandalf.

Decidi puxar assunto com o atendente e perguntei se ele era fã de “O Senhor dos Anéis”. Surpreendentemente, ele respondeu que não curtia esse tipo de filme. Insisti e sugeri que ele desse uma chance, afirmando que poderia começar lendo a trilogia se preferisse. Ele ficou intrigado ao descobrir que a história havia sido, na verdade, originalmente escrita em forma de livro.

A medida em que procurava nos sacos plásticos, o atendente, de modo muito cômico, brincava e dava novos nomes aos personagens: Papai Noel; Coisa Linda; Carequinha; Sem Boca, Cavanhaque, Loirinho e Barba.

Memorizei os novos nomes. Assim como o rosto de cada um deles. Refiro-me agora aos atendentes. E não me esqueço daquela jovem que desde o início dessa aventura inesperada em um mundo de refeições rápidas, não parou nenhum minuto de fritar naquela chapa, que talvez, seja tão igualmente quente quanto o fogo da Montanha da Perdição.

A Montanha da Perdição é o local onde o Anel foi forjado por Sauron, e é o único lugar onde ele pode ser destruído. Frodo Bolseiro, com a ajuda de seu amigo Samwise Gamgi, foi encarregado de levar o Anel até lá e jogá-lo nas chamas ardentes, pondo assim fim ao domínio de Sauron sobre a Terra Média.

Até quando?

Voltei para casa animado com minhas miniaturas, mas pensando muito naqueles jovens e naquela moça fritando os hambúrgueres. Vi que todos eles tinham mais em comum com os ensinamentos dos personagens do Senhor dos Anéis do que eu poderia imaginar.

Da caixa registradora ao Um Anel, me despedia imaginando os tesouros inesperados daquela noite na rede de fast-food. Apre(e)ndi.

Desejo (é preciso aprender a saber-desejar) para não querer o Um Anel.
E desejo de coração (sempre se deseja de coração) que aqueles heróis anônimos encontrem em suas jornadas invisibilizadas, mesmo diante de uma praça de alimentação lotada, a magia da Terra Média.

E acredito que cada personagem daquelas miniaturas tem um ensinamento para vocês. E podem trocar os nomes, se preferirem:

Frodo Bolseiro:
Assim como Frodo, que embarcou em uma missão aparentemente impossível para destruir o Um Anel, os atendentes enfrentam uma jornada diária, extensa e repleta de desafios. Carregam a responsabilidade de alimentar e satisfazer inúmeras pessoas, muitas vezes com prazos apertados e expectativas elevadas.

Determinação e coragem como Aragorn:
A determinação de alguns atendentes era digna de Aragorn, o herdeiro de Gondor. Eles enfrentam desafios com coragem, trabalhando em equipe com firmeza e se recusando a desistir, mesmo quando a pressão é avassaladora.

Legolas e Gimli:
Tal como Legolas e Gimli superaram suas diferenças e se tornaram amigos leais durante a jornada, os atendentes também encontram amizades duradouras no local de trabalho. Eles podem valorizar as qualidades únicas uns dos outros e se apoiarem mutuamente.

Os obstáculos da praça de alimentação como desafios na Terra Média:
Lembrem-se que essas dificuldades podem se transformar em oportunidades para o crescimento pessoal, e, assim como os personagens do Senhor dos Anéis cresceram através de suas experiências, espero que essa etapa da vida de vocês os leve a alcançar os seus sonhos e objetivos.

Solidariedade e Trabalho em Equipe como a Irmandade do Anel:
Como na Irmandade do Anel, onde personagens diversos se uniram para alcançar um objetivo comum, os atendentes demonstram a importância do trabalho em equipe e da solidariedade. Eles dependem uns dos outros para manter a operação funcionando suavemente, lembrando-nos de que juntos são mais fortes. Fujam da competividade, do egocentrismo e das disputas que não os fortalecerem coletivamente.
O que passar disso, é de procedência de Mordor, da cultura de Sauron e dos Orcs.

Ensinos de Gandalf:
Não podemos esquecer dos ensinamentos de Gandalf, que nos lembra que até mesmo as jornadas mais difíceis podem ser vencidas com sabedoria, paciência e perseverança.

À medida que saía da praça de alimentação, daquele fast-food, da correria, embora contente com minhas miniaturas todas, não pude deixar de refletir sobre a incrível determinação demonstradas pelos jovens atendentes.

Suas jornadas diárias, tão frequentemente subestimadas, compartilham valiosas lições com os ensinamentos dos personagens do Senhor dos Anéis. Devemos lembrar que, independentemente do cenário, todos enfrentamos nossas próprias batalhas e desafios, e podemos encontrar inspiração em lugares inesperados. Mesmo num shopping, entre vitrines e sacolas, há ainda os simulacros existenciais que precisam de encantamento, como uma novidade que vem até nossa realidade.

Coleção o Senhor dos Anéis, Bob’s Burgers. Fonte: Bob’s, 2023.

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