Do lamento das igrejas evangélicas fechadas na sexta-feira santa

Vinnícius Almeida
5 min readMar 28, 2024

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Quando o assunto é espiritualidade, gosto de dizer que moro no cristianismo, embora minha casa (costumes, sotaques, manias) estejam vinculados à tradição protestante. É a partir daqui que falo.

E é um motivo de lamento saber que a maioria das igrejas evangélicas no Brasil não tenham despertado para a importância de datas como a Semana Santa, nossa Semana Maior, e mesmo o Tríduo Pascal ou sequer a Sexta-feira da Paixão.

Liturgia, Ano Litúrgico, Calendário Cristão, Lecionário… ainda são palavras que soam estranhas para muitos de nós.

Em seu livro Sociedade do Cansaço, Byung-Chul Han argumenta que a cultura contemporânea está perdendo seus rituais e cerimônias, o que pode levar a um sentimento de vazio e isolamento. Para Han, os rituais são uma forma de nos conectarmos com os outros e com o mundo ao nosso redor. Eles nos fornecem uma sensação de pertencimento e significado, e nos ajudam a lidar com os desafios e transições da vida.

Contudo, o autor nos lembra que na sociedade contemporânea, os rituais estão sendo substituídos por uma cultura de “auto-aperfeiçoamento” e “eficiência”, onde tudo deve ser rápido e produtivo. Uma pista de que talvez queiramos pular logo para o banquete de Páscoa, sem antes vivenciar o sofrimento, as lágrimas, a traição, a negação, a humilhação, a morte, o luto, o silêncio, a crise, a dúvida, decepção e confusão… até que venha então o túmulo vazio e a ressurreição.

Sobre Memória:

O Evangelho de S. Lucas 22,11 apresenta a mesma fórmula que se encontra na afirmação do apóstolo Paulo em sua carta de 1 Coríntios 11,26. Ela define a refeição eucarística como o memorial do sacrifício de Jesus, (re)memorando a partir de outra prática já conhecida: a refeição pascal de Israel (cf. Ex. 12,14; 13,9; Dt. 16,3).

Interessantíssimo para nós, porque na última ceia, vem justamente esse ritual que deve ser feito. Em Memória.

Sem a presença dos cerimoniais para nos ajudar a processar nossas emoções e marcar as transições importantes da vida, podemos nos sentir perdidos e sem rumo. É isso que Han argumenta: para recuperar um senso de significado e conexão, precisamos resgatar os rituais e as cerimônias em nossas vidas, tanto a nível pessoal quanto social.

Se o filósofo estiver correto, por que ainda há igrejas que ficam fechadas na data mais importante da religião cristã?

Há ainda quem desdenhe das procissões, da arte produzida e celebrações (e todo ano tem), dizendo enfaticamente que Jesus ressuscitou, portanto, essas práticas não são mais necessárias e não devemos rememorá-las. Ledo engano (espero).

Uma das razões pelas quais muitos evangélicos não seguem o ano litúrgico é que eles enfatizam uma abordagem mais individualista e bíblica (biblicista?) da religião. Para muitos grupos, a experiência religiosa pessoal e a leitura da Bíblia são mais importantes do que seguir rituais ou tradições religiosas estabelecidas. Eles acreditam que a fé cristã deve ser uma experiência pessoal e livre, em vez de seguir uma liturgia predefinida (ou melhor, cuidadosamente delineada).

Outra razão é que muitos evangélicos se opõem a algumas das práticas e tradições associadas ao ano litúrgico.

O ano litúrgico é uma tradição da igreja que segue um calendário anual de celebrações religiosas e eventos, incluindo Advento, Natal, Epifania, Quaresma, Páscoa, Pentecostes, entre outras datas.

Não é nenhum exagero afirmar que a maioria dos cristãos no mundo seguem o ano litúrgico de algum modo, incluindo as tradições orientais e ocidentais. Embora haja diferenças significativas na forma como as diversas denominações cristãs observam o ano litúrgico, a prática é comum em muitos lugares.

Me oriento na perspectiva do grupo que vem alertando sobre a rejeição pelos evangélicos, do ano litúrgico, dos ritmos e rituais que podem ter um efeito negativo na comunidade religiosa e mesmo na espiritualidade cristã.

Vanhoozer é um dos teólogos protestantes que vem dizendo isso: da importância da articulação entre cânon, tradição, história e identidade. Em O Drama da Doutrina, lembra que a liturgia cristã é uma forma de teologia em ação, que permite aos cristãos experimentarem e expressarem sua fé através de palavras e gestos.

“Se Deus fala e age, nós também devemos fazer”, mas para tanto, precisamos atuar, compreendendo nosso lugar, nosso papel [Teodrama], aprendendo quem somos e apreendendo do caráter formativo, não só informativo, como lembra James K.A. Smith.

Daí, enfatiza que a liturgia é uma forma de comunicação. Nesse sentido, para Vanhoozer, ela não apenas transmite a mensagem do evangelho, mas também transforma aqueles que participam dela.

Se a ênfase na experiência individual pode levar à fragmentação e ao isolamento da comunidade (ou até ao subjetivismo); enquanto a falta de rituais e tradições pode levar a um sentimento de falta de conexão e significado, como aponta o filósofo sul-coreano aqui citado, por quê ainda desprezamos essas práticas milenares e tão comuns à fé cristã num âmbito global?

Aquilo que Charles Taylor entenderia como vocabulários de valor…

Parece que o presentismo e o pragmatismo afetam as organizações de grupos evangélicos que buscam se comunicar com todo tipo de vocabulários (conjuga o vocabulário do coach, da autoajuda, da política progressista, da conservadora, da nacionalista), ou seja, dialoga com tudo menos com o acúmulo do depósito da fé, presente na diversidade cristã de sua própria tradição, garantida numa comunidade milenar.

É mais fácil olhar para a metodologia inovadora empreendedora do que para o que pensa o irmão católico-romano, ortodoxo, anglicano, copta, pentecostal, metodista…

É triste ver as igrejas, que poderiam ofertar tanto pertencimento, esperança e sentido (simbólico, teológico, espiritual), fechadas num dia como o de hoje.

Espero, nas lembranças do Facebook do próximo ano, ver mais posts sobre esse dia e, sobretudo, mais igrejas evangélicas abertas, celebrando o significado da Sexta-feira Santa.

Fonte: Unsplash

Sexta-feira da Paixão, 2023.

Referências:

ARAÚJO, Paulo Roberto M. Charles Taylor: para uma ética do reconhecimento. SP: Loyola, 2004.
HAN, Byung-Chul. A Sociedade do cansaço. 2ª edição ampliada. RJ: Vozes, 2017.
SMITH, James K.A. Imaginando o reino: a dinâmica do culto. SP: Vida Nova, 2019.
VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. SP: Vida Nova, 2016.

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